Os Grandes "Pecados Originais" do Direito Administrativo




O Direito Administrativo passou por uma série de traumas que geraram doenças (há momentos de esquizofrenia, psicoses, histerias, etc). E mesmo nos dias de hoje, em que o Direito Administrativo aprendeu a viver consigo próprio, ainda há falhas que têm uma explicação que decorrem do inconsciente. 

Olhando para a “infância” do Direito Administrativo houve dois acontecimentos, o primeiro no seu surgimento formal, o segundo no quadro do desenvolvimento nos primeiros tempos. Estes acontecimentos correspondem dois traumas de infância do Direito Administrativo que deixaram sequelas até aos nossos dias.

1. Surgimento da justiça administrativa / do contencioso administrativo.

Em 1789, com a Revolução Francesa, os revolucionários, dizendo que estavam a consagrar o sistema da separação de poderes, estabeleceram a promiscuidade entre administração e justiça.
A Revolução Francesa proibiu os tribunais comuns de controlar a administração, o que significa atribuir à Administração Pública a tarefa de se julgar a si mesma - a Administração Pública passava a ser juiz em causa própria. Esta realidade era a negação da separação de poderes uma vez que separar os poderes era evitar que a Administração Pública e Justiça se confundissem, que as autoridades administrativas emitissem sentenças como os tribunais e que os tribunais pratiquem atos administrativos.

Este fenómeno é uma espécie de pecado original do contencioso administrativo que não assenta na separação de poderes, mas na promiscuidade entre a Administração e a Justiça. Os revolucionários franceses não se aperceberam da contradição que estava a acontecer, pois achavam que estavam a separar a Justiça da Administração.

Freud fala de recordações de cobertura – recordações que o paciente tem acerca dos factos traumáticos onde ele vai dar desses factos uma visão romanceada da qual só se vai conseguir abstrair após o tratamento. Em jeito de metáfora, o Direitos Administrativo vai ter essa ideia traumática que se prolonga quase até aos nossos dias. 

Só em 1976 é que os tribunais administrativos que se tornaram verdadeiros tribunais (autónomos, independentes e integrados no poder judicial) – isto demonstra como este trauma original do Direito Administrativo chegou quase até aos nossos dias em Portugal. No quadro da Constituição de 1933, como dizia Marcelo Caetano, os tribunais administrativos que tinham esse nome (Tribunais Administrativos) eram órgãos administrativos no exercício da função jurisdicional. Só muito tarde é que ganharam independência.

No entanto, até 2004 o que o juiz administrativo podia fazer era apenas anular os atos administrativos quando fossem ilegais. Só a partir desta data (2004), com a reforma do contencioso administrativo, é que os juízes administrativos se tornaram juízes como os outros que podem condenar e dar ordens à Administração. Por este motivo se considera que o trauma do pecado original chegou até muito tarde

Isto demonstra como os acontecimentos traumáticos da origem do Direito Administrativo perduram no tempo e geram disfunções no quadro teórico de entendimento do mesmo.

2. 1872 – (caso da Agnès Blanco) uma sentença do tribunal de conflitos francês à cerca de um atropelamento de uma criança de 5 anos por parte de uma empresa pública tabaqueira - dá origem a um trauma que dura até aos nossos dias e que continua a deixar sequelas.

Resumo do caso: 

Inês é atropelada ficando num estado lastimável (várias deficiências físicas). Os pais da criança não se conformam com a situação, pois o atropelamento deu-se numa zona onde outras crianças também podiam brincar. Neste sentido, os pais dirigiram-se ao tribunal para obter uma indeminização. 

O Tribunal de Bordéus respondeu afirmando que não tinha competência para decidir, porque o que estava em causa é um litigioso provocado por um desastre de uma empresa pública. O mesmo tribunal refere ainda que mesmo que quisesse resolver aquele caso não o poderia fazer porque não há direito aplicável – o Código Civil era apenas aplicável a indivíduos em nível de igualdade e a Administração Pública não estava em posição de igualdade.

Dito isto, os pais dirigiram-se à jurisdição administrativa, o Conselho de Estado - órgão criado para controlar a administração. No entanto, antes de chegar ao Conselho de Estado, pronunciava-se um “juiz de 1ª instância”, o Presidente da Câmara de Evrie (bem patente aqui a promiscuidade entre a Administração Pública e justiça; a Administração Pública a julgar-se a si mesma). Este juiz vem repetir o que tinha sido dito pelos juízes do Tribunal de Bordéus: não tem competência em relação ao caso pois só tem competência para anular atos administrativos e mesmo que tivesse competência não poderia decidir o caso porque não há norma jurídica aplicável.

Então, este caso foi para o Tribunal de Conflitos - que resolve conflitos positivos ou negativos de jurisdição. Isto é, diz qual o tribunal competente em relação à matéria em causa quando mais que uma jurisdição se considera competente para resolver o caso (positivo) ou quando mais do que uma jurisdição não se considera competente para resolver o caso (negativo). Veio este Tribunal considerar que o tribunal competente é o Conselho de Estado, o que significa que a justiça administrativa é a competente para resolver o caso. Para além disto, o Tribunal de Conflitos veio referir que não havia norma aplicável e, por isso, seria preciso criar um Direito especial para proteger a Administração Pública porque esta não podia responder e ser responsabilizada nos termos de qualquer particular.

Dizem os autores que esta sentença é uma espécie de batismo do Direito Administrativo – um tribunal vem reconhecer a necessidade de um novo ramo do Direito.  

Da definição da jurisdição administrativa e do Direito aplicável. 

Até 2008 havia em Portugal um sistema que distinguia entre gestão publica e privada. Por exemplo, se o automóvel de serviço do Presidente da República atropelasse uma criança, até 2008 tínhamos que tentar saber qual era o tribunal competente e, para isto, tínhamos que saber se havia gestão pública ou privada: se o Presidente da República estivesse lá dentro era gestão publica, se não estivesse era gestão privada, isto porque estando o titular do cargo público lá dentro há um ambiente de Direito Público (o que não faz sentido).

O Prof. Vasco Pereira da Silva assume-se crítico desta visão uma vez que mesmo que o Presidente da República esteja lá dentro provavelmente não daria ordens para atropelar a criança. Mais, mesmo que o titular do cargo público não estivesse dentro do carro o funcionário (motorista) pode receber ordens do mesmo a qualquer momento (telemóvel, rádio, ...). Ou seja, não deveria haver dúvidas quanto aos tribunais competentes ou quanto ao Direito aplicável.

Até 2004 havia dúvidas quanto à competência do Tribunal Administrativo e quanto ao Direito aplicável. Depois de 2008 estas dúvidas quanto à competência do Tribunal já estavam mais esclarecidas, mas ainda havia dúvidas em saber qual é o Direito aplicável. Isto porque o legislador, que tinha que extinguir a distinção pública entre gestão pública e gestão privada (opinião do Prof. Vasco Pereira da Silva), preferiu não dizer nada e deixar essa questão para a intérprete – o legislador utiliza expressões, no âmbito da definição da aplicabilidade do regime da responsabilidade civil pública, como “quando haja lugar ao exercício de prerrogativas públicas” (art.1º/2 da Lei de Responsabilidade Civil Pública).

Assim, a referência final art.1º/2 da Lei da Responsabilidade Civil Pública permite acabar com o trauma em relação ao Direito aplicável mesmo que o legislador pudesse ter sido mais claro a fazê-lo.

Em relação a esta questão, o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa crítica severamente o legislador, mas diz que temos de nos conformar com o texto atual do art.1º da Lei da Responsabilidade Civil Pública. Já o Prof. Vasco Pereira da Silva pensa que é possível construir já uma visão unificada da responsabilidade civil pública superando assim o trauma do caso da Agnès Blanco.

Fonte: aulas de Direito Administrativo com Prof. Doutor Vasco Pereira da Silva na Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, ano letivo 2018/2019, 2º semestre.

Vicente Pirrone.
Nº 140117137.

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