Vícios do ato administrativo


Vícios do ato administrativo (Visão clássica)

Atualmente existem inúmeras formas de invalidade do ato administrativo, estando a definição legal de ato administrativo vertida no art 148º do CPA. Analiso de seguida a invalidade e as várias fontes de invalidade dos atos administrativos, que se verificam quando os mesmos são inaptos para a prossecução dos efeitos jurídicos desejados. As ilegalidades do ato Administrativo, podem ramificar-se segundo a natureza orgânica, formal e material.
Segundo o Professor Diogo Freitas do Amaral, entende-se por invalidade do ato jurídico," o valor jurídico negativo que afeta o ato administrativo em virtude da sua inaptidão intrínseca para a produção dos efeitos jurídicos que devia produzir". Anteriormente, a ilegalidade era a única fonte de invalidade dos atos administrativos, contudo, hoje, reconhecemos outras fontes de invalidade, nomeadamente, a ilicitude. Para o Professor João Caupers as duas causas geralmente admitidas de invalidades são a ilegalidade e o vicio de vontade.
A Administração Pública tem poderes vinculados, ou seja, a administração está sujeita às regras impostas pela lei, e poderes discricionários, uma vez que a Administração Pública toma decisões próprias com base nos critérios definidos pela lei. Deste modo, a Administração Pública ao exercer o poder discricionário, não é livre e está condicionada às opções do ordenamento jurídico. Todo o ordenamento jurídico fornece padrões de decisão que são padrões de controlo das atuações administrativas. Portanto, tem como resultado que o poder discricionário tal como o poder vinculado é também controlado, obrigando a uma maior intensidade do controlo administrativo nos nossos dias.

Vícios
Devido à influência do Professor Marcelo Caetano, começa a ser possível falar-se de uma verdadeira construção que distingue claramente 5 vícios: incompetência, usurpação do poder, desvio de poder, vício da forma e violação de lei.
Há 2 tipos de incompetência, que são ilegalidades orgânicas, resultam de uma consequência direta do princípio da reserva de lei:

  • Incompetência absoluta: falta de atribuições, o ato praticado pelo órgão não cabe nas atribuições da pessoa coletiva ou do órgão que atua. O vicio tem como desvalor jurídico a nulidade, à luz do artigo 161/2 alínea b) do CPA.

A lógica clássica levava à correspondência entre pessoas coletivas e atribuições e órgão com competências, sabendo que as atribuições estão relacionadas com os fins que estão a ser prosseguidos pela entidade e a competência está relacionada com o conjunto de poderes funcionais. Assim, essa correspondência hoje não faz sentido ao nível do Estado, há uma multiplicidade de atribuições, dentro do próprio Estado os diferentes órgãos atribuem atribuições diferentes, como por exemplo os ministros têm competências idênticas, mas atribuições diferentes.

  •  Incompetência relativa: quando um órgão de uma pessoa coletiva pública pratica um ato que está fora da sua competência, mas que pertence à competência de outro órgão da mesma pessoa coletiva. Desta forma, ao contrário do que sucede na incompetência absoluta, teríamos como desvalor jurídico a anulabilidade do ato, que é uma sanção menos grave, nos termos do artigo 163º do CPA.

As duas incompetências, podem ainda ser analisadas pelos seguintes critérios:

  • em razão da matéria: quando um órgão da Administração invade os poderes conferidos a outro órgão da Administração em função da natureza dos assuntos;

  • em razão da hierarquia: quando se invadem os poderes conferidos a outro órgão em função do grau hierárquico, isto é, quando o subalterno invade a competência do superior, ou quando o superior invade a competência própria ou exclusiva do subalterno;

  • em razão do lugar: quando um órgão da Administração invade os poderes conferidos a outro órgão em função do território;

  • em razão do tempo: quando um órgão da Administração exerce os seus poderes legais em relação ao passado ou em relação ao futuro. Todavia, existem  os casos em que a lei, excecionalmente, o permite.

Além das incompetências existe também o seguinte vicio:

  •  Vicio de usurpação do poder: Surgiu a partir do momento em que se consagrou o princípio de separação de poderes, com a revolução francesa sendo uma ilegalidade orgânica. Em Portugal, o princípio está expresso nos artigos 2º e 111º da CRP. O controlo da competência significava verificar se havia incompetência absoluta ou relativa, mas aplicava outro juízo, havia uma incompetência grave quando a Administração Pública invadia um outro poder do estado, quando um órgão administrativo praticava um ato do poder legislativo ou judicial, por exemplo a fixação do montante de indemnização de responsabilidade civil.O Professor Marcelo Caetano, mencionava que havia usurpação de poderes quando o ato incluía atribuições do poder judicial. Todavia o Professor Freitas do Amaral considera que pode ser dividida entre usurpação de poder legislativo (a Administração pratica um ato que pertence às atribuições do poder legislativo), usurpação de poder moderador (órgão administrativo pratica um ato que pertence às atribuições do poder moderador/presidencial) e usurpação de poder judicial (a Administração pratica um ato que pertence às atribuições dos Tribunais). Nestes termos, o vício tem como desvalor jurídico a nulidade, que corresponde a uma sanção mais grave da ordem jurídica, não produzindo qualquer efeito, nos termos do artº161º nº2 alínea a) do CPA.


Se só se controlava no nível do poder discricionário o domínio da competência, tudo o resto não era controlado, havia arbitrariedade. Esta limitação de possibilidade de controlo apenas da competência é um controlo externo e nada diz a cerca do ato que está a ser praticado. Assim, O Professor Marcelo Caetano acrescentou um outro vicio/ilegalidade que também podia ser controlado no quadro do poder discricionário, é uma ilegalidade material:

  •  Vicio de desvio de poder: quando uma lei atribui um poder a um órgão, essa lei está estabelecida com um fim e essa finalidade tem de ser prosseguida por um órgão administrativo mesmo quando está em causa o exercício de um poder discricionário. Deste modo, este vicio ocorre quando há a prossecução de um fim, diferente do fim que a lei estabelecia, colocando em causa o princípio da prossecução do interesse público (artigo nº4 do CPA). Esta ilegalidade deu origem a uma duplicação/realidade de natureza dualista:
    • Por um lado, havia ilegalidade nos casos mais graves quando a Administração Pública invés de prosseguir um fim de interesse publico prosseguia um fim de interesse privado. O Professor Freitas do Amaral considera que a prossecução de um fim de interesse privado era a corrupção, consequentemente as próprias atuações em causa são nulas, tendo, assim, consequências penais e administrativas. Expresso no artigo 161º nº2 e) do CPA, gerando nulidada.
    • Por outro lado, pode haver uma ilegalidade quando a Administração Pública prossegue um fim de interesse publico que é diferente do fim visado/lega.


Um dos exemplos dados pelo Professor Vasco Pereira da Silva, que considero relevante relembrar, foi um caso nos anos 70, em que ocorre a primeira sentença em que o Tribunal Administrativo vai reconhecer a presença do vicio da usurpação de poderes, nomeadamente quando se substitui um fim de interesse publico por outro fim de interesse publico. Assim, uma enfermeira da maternidade Alfredo da Costa, cometia algumas falhas de natureza disciplinar (chegava tarde, era respondona..), com tais falhas disciplinares a enfermeira  podia em termos disciplinares ser suspensa, mas não iria dar aso a uma punição muito grave. Quando estava de serviço, houve uma troca de bebes, o diretor de serviço achou que o melhor era arranjar um bode expiratório, que se a enfermeira fosse expulsa resolveria o problema da má imagem da maternidade devido à troca de bebes. Logo, a enfermeira dentro dos seus direitos foi a tribunal e o STA considerou que houve uma ilegalidade e que aquele ato devia ser anulado, e a razão desta ilegalidade é que o juiz entendeu que a enfermeira podia ser punida através do processo disciplinar de forma proporcional e que o diretor da maternidade para defender a honra e a dignidade do serviço publico, devia estar a usar de um fim de interesse publico que é o processo publico, para dar um satisfação ao interesse publico (que também é de interesse publico),mas que não tinha nada a ver com as falhas que a enfermeira tinha cometido. Logo, a expulsão era ilegal e o STA vem anular esse ato administrativo, pois o fim prosseguido pela Administração Pública era diferente do fim legal.

O Professor Marcelo Caetano considera que o vicio de desvio de poder era o vicio característico do poder discricionário, este vicio só podia existir no âmbito do poder discricionário, não fazia sentido no âmbito dos poderes vinculados, todos os outros não podiam existir no quadro da discricionariedade, impedia-se qualquer controlo e limitava-se a estes elementos externos, o controlo do poder discricionário, era admitido, tudo o resto estava fora do controlo, na medida em que tudo o resto era uma exceção ao princípio da legalidade.

Acrescento que para se verificar se existe um desvio de poder, deve se: 1º apurar o fim visado pela lei ao dar um poder a certo órgão; 2º o motivo principal para a pratica do ato; 3º ver se o motivo principal condiz com o fim legal: se haver coincidência é válido, caso não haja é ilegal, por desvio de poder logo é inválido.

Além dos 5 vícios principais apresentados, também pode existir dois outros tipos de vícios:

  • ·Vício de forma, segundo o Professor Freitas do Amaral consiste na preterição de formalidades essenciais ou na carência de forma legal, sendo uma ilegalidade formal. Comporta três modalidades: falta de formalidades anteriores à prática do ato, falta de formalidades relativas à prática do ato e carência de forma legal.

  •   Violação da lei: o vício que consiste na discrepância entre o conteúdo ou o objeto do ato e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis. O vício de violação de lei produz-se quando, no exercício de poderes vinculados, a Administração decide coisa diversa do que a lei estabelece ou nada decide quando a lei manda decidir algo. Por sua vez, este vicio tem de ser entendido em sentido restrito, na medida em que se for em sentido amplo todos os vícios são violações da lei. Comporta várias modalidades, como exemplo a falta de base legal ou erro na aplicação de normas jurídicas. É uma ilegalidade material, visto que a substância do ato administrativo é contrária a lei.

Apesar do vicio de a violação da lei ocorrer essencialmente no exercício dos poderes vinculados, também pode ocorrer no exercício dos poderes discricionário. Os Professores Freitas do Amaral e Cervulo Correia consideram que para além do vínculo da competência e do fim, há também outros vínculos avulsos do poder discricionário, que decorrem dos princípios estabelecidos pelo ordenamento jurídico, veja-se como exemplo os princípios constitucionais. Adotando esta perspetiva além do controlo da competência e do fim, também se violam os princípios constitucionais e essa violação leva a ilegalidade de qualquer ato administrativo. Os princípios, por sua vez eram diretamente aplicados, mesmo que não existissem na lei, sendo parâmetros de decisão e de controlo das decisões administrativas. Como os poderes constitucionais vão crescendo também, assim, vai aumentar o controlo do poder discricionário. Estes princípios adquirem um conteúdo que não é apenas da legalidade, não apenas o controlo do exato cumprimento da lei, uma vez que estes princípios permitem um controlo do mérito da decisão administrativo. Não se faz apenas como o Professor Marcelo Caetano considerava um controlo externo. Os princípios permitem o controlo do poder discricionário, e há medida que vão ser alargados perdem o papel avulso e permitem um controlo mais intenso desse poder e nos dias de hoje há princípios vão desde os princípios globais (due process of law e da proporcionalidade),  europeus (da boa administração) aos que que resultam as normas regulamentares, atuações administrativas, contratos. Deste modo, há toda uma realidade jurídica que vai permitir o controlo do poder discricionário, porque vai criar parâmetros de decisão em vários níveis e no de lógica intensa e multinível, introduz um controlo mais completo do poder discricionário
Considero relevante mencionar, apesar sumariamente, que o Professor Freitas do Amaral menciona também o vicio da:

  • Ilicitude: coincide por regra com a ilegalidade, ou seja, o ato é ilícito por ser ilegal. Contudo, há casos em que um ato é ilícito sem ser ilegal, havendo ilicitude sem haver ilegalidade, tais como os casos em que o ato administrativo, sem violar a lei, ofende um direito subjetivo ou um interesse legítimo de um particular. 
  •  Vícios da vontade: nomeadamente em casos de erro, o dolo e a coação, uma vez que os atos jurídicos da administração têm que ser realizados segundo uma vontade esclarecida e livre. Assim, haverá uma vontade influenciada, que fundamenta a invalidade do ato e não a violação da lei. É fundamentalmente importante nos atos discricionários, na medida em que quando a Administração exerce o seu poder discricionário, a vontade do órgão administrativo torna-se relevante, visto que a lei lhe deu autonomia para tal.


Nulidade e Anulabilidade
Dependendo da invalidade ato pode ser aplicado um regime mais severo que é o da nulidade ou um regime mais leve da anulabilidade.

Assim, o regime da nulidade, está presente no art 162º do CPA. O ato nulo é ineficaz, logo não produz efeitos em termos de apreciação jurídica e não em termos factuais (art 162º nº1). O ato nulo é passível de impugnação contenciosa ilimitada no tempo (art 162º nº2 CPA); qualquer tribunal ou órgão da Administração Pública pode declarar a nulidade; a sentença que declara a nulidade tem natureza declarativa; assiste ao funcionário púbico e aos particulares confrontados com um ato nulo o direito de desobedecia; os atos nulos poder ser objeto de reforma ou de conversão (art 164º nº4). Logo, sumarizando o já referido anteriormente os atos de usurpação de poderes, incompetência absoluta, atos que sofrem de vicio de forma, na modalidade de carência absoluta de forma legal, atos praticados sob coação são atos nulos.

Separadamente, o regime da anulabilidade expresso no art 163º do CPA, que é imposto por razões de segurança jurídica, consiste em que é ato anulável é eficaz até ser anulado; a anulabilidade sana-se com o decurso do tempo, ratificação, reforma ou conversão; apenas os tribunais administrativos podem anular um ato administrativa;  a sentença judicial de anulação tem natureza constitutiva; não assistem aos funcionários públicos o direito de resistência, porque o ato goza de presunção de ilegalidade até ser anulado; os atos anuláveis são sanáveis . Logo, são atos anuláveis os atos viciados por incompetência relativa, desvio de poder, atos praticados por erro, dolo ou incapacidade acidental.

Concluindo, considero que os vícios permitem que exista um controlo dos fins/atos que a Administração prossegue, de modo a que não exista uma fuga total aos fins que a lei prevê que esta prossiga, nomeadamente quando lhe dá o poder de discricionariedade. É essencial para um controlo dos atos da Administração pública e consequentemente uma maior proteção dos direitos dos particulares, ganhando com isso maior segurança jurídica. Naturalmente, pode ocorrer uma situação em que dois ou mais vícios existirem no mesmo ato, uma vez que os vícios são cumuláveis, fazendo com que seja essencial sempre averiguar não se um determinado vicio se verifica ou não, mas também se os outros vícios também ocorreram, para maior proteção do particular.

Bibliografia:
AMARAL, Diogo Freitas do Curso de Direito Administrativo – vol.II, 3ªed., Almedina, 2017
CAUPERS, João Introdução ao Direito Administrativo—12º edição, Âncora, lisboa, 2009
Aulas Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva

Ana Rita Guerra Alves
Nº 140117105

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