Princípio da Legalidade
O Princípio
da Legalidade coloca-se como uma questão central do Direito Administrativo. Deste
modo, considero relevante, antes de se tentar compreender a influência que
exerce nos nossos dias, como é a sua construção histórica é fundamental.
Em primeiro
lugar, há que compreender que, como afirma o Professor Marcelo Rebelo de Sousa,
“os princípios atinentes à organização e ao funcionamento da administração são fundamentalmente
dirigidos ao legislador". Estes aplicam-se, não só de modo a garantir que
a atividade administrativa se rege de acordo com o direito, como também se aplicam
na esfera interna da administração.
Este
princípio decorre não só nos artigos 2.º e 266.º/2 da Constituição da República
Portuguesa, como está consagrado no artigo 3.º do Código de Procedimento Administrativo.
Na sua
vertente histórica, na época do Liberalismo Político este preocupou-se com a
ideia de que o poder administrativo pudesse ser limitado pela lei, mesmo se ao
mesmo tempo não se preocupando com a defesa de direitos administrativos ou
controlo jurisdicional da administração – podemos dizer que este princípio teve
uma “infância difícil”.[1] Numa
lógica liberal, a administração pública devia ser entendida de forma limitada –
tanto orgânica como funcional – o que lhe cabia fazer era garantir a liberdade
e segurança. Fazia-o através do uso da força, polícia e forças armadas –
portanto, o modelo de administração é o modelo autoritário – utilização da
força física para garantir a liberdade aos cidadãos – contudo, este uso da
força estava submetido às limitações legais. A partir do século XIX, em que as
leis já provinham do governo, estas diziam respeito às relações privadas. Por
um lado, dizia-se que, através do princípio da legalidade, a administração estava
limitada por lei. Por outro lado, dizia-se de igual modo que em tudo o que a
lei não dispusesse – tudo o que não fosse de liberdade e propriedade - a
administração era livre de fazer o que quiser – resulta de uma margem de
liberdade: gozava de plenitude de poder. Nesta altura, a administração era
agressiva e autoritária - podemos afirmar que esta construção autoritária da
administração era resultado da construção teórica do liberalismo político, que,
de acordo com o Professor Vasco Pereira da Silva, o Estado democrático e
liberal tem 2 pais e 2 mães:
a. Hobbes e
Rosseau (elemento democrático);
b. Locke e
Montesquieu (instituíram a vertente da separação de poderes e a garantia dos
direitos individuais).
As
primeiras construções do Direito Administrativo foram feitas tendo em base a força
física, esta manifestava-se através do ato administrativo - relação legislativa
por excelência, era executório - suscetível de atuação coativa. A par disto, a
administração gozava de privilégios – em face dos particulares, expressão que
vai ser utilizada porMaurice Hauriou – privilégios da execução prévia de bens:
executar coativamente qualquer decisão porforça da vontade da administração. Os
dois pressupostos mencionados anteriormente, vistos hoje à luz da legalidade,
são manifestamente impossíveis visto que a administração, hoje está submetida à
lei, e, como tal, não goza de qualquer privilégio – goza apenas dos poderes
legais e na estrita medida que a lei o estabelece – e goza de poderes públicos
com conteúdo da concreta lei que executa. Ideia anterior de esta ter um
privilégio é agora considerado um absurdo e contrassenso. Além disto, não faz
sentido falar em excecutoriedade dos atos administrativos – a transição do
Estado Liberal para o Estado Social leva a que a maior parte dos atos
administrativos se tenham tornado atos da administração prestadora – o que
contrapõe a administração agressiva. A administração prestadora atribui aos
particulares bens e serviços, cria direitos – tem uma função de prestar bens e
serviços aos particulares. Logo, não faz sentido dizer que esta é executória,
ou seja, que goza de atuação coativa contra a vontade dos particulares. É o
particular que quer que a administração atue – é este que solicita a sua
atuação e é este que é beneficiado pela mesma. Como diz a doutrina até 2004, é
um contrassenso – os atos favoráveis não são de natureza suscetível de execução
coativa contra a vontade dos particulares. Se estes atos – atos prestadores -
não são suscetíveis porque a natureza das coisas não o permite, tal como é
defendido pelo Professor Vasco Pereira da Silva. Por exemplo, não é possível
executar uma bolsa de estudo contra quem a pediu.
Na nossa
ordem jurídica, tradições que vêm do século XIX, como os atos que correspondem
ao pagamento de quantias monetárias – atos que têm um dever de protestar em
dinheiro – por força da lei, do CPC, têm a solução proibida. Por exemplo: se
formos multados podemos pagar a multa, no entanto, se não a pagarmos, a polícia
não nos pode obrigar a pagar a multa – temos de ir ao tribunal para que este
condene o particular pela violação de uma determinada disposição legal (código
da estrada). Tudo o que envolva prestações monetárias não pode ser executado
pela administração – isto significa que esta noção transformada da legalidade
tem o sentido diferente da noção originária – e, portanto, põe em causa a
lógica do ato administrativo - da que o Estado Liberal tinha construído no esquema
da atuação administrativa.
O princípio
da legalidade tem, assim, dois fundamentos que persistem até hoje: um
fundamento garantístico, na medida em que visa assegurar que a atuação
administrativa não ocorre em termos imprevisíveis para os cidadãos; e um
fundamento democrático, designadamente com base num titulo de legitimidade
próprio do executivo. Assim, isto implicava uma mera subordinação à lei, e não à
ordem jurídica.
Anteriormente,
o princípio da legalidade era visto como um – direito real: direito sobre uma
coisa. Na lógica liberal, a legalidade era entendida como uma propriedade, mas,
“olhar para o direito público como direito real era uma visão deturpada”. Em
Portugal foi Francisco Lucas Pires que estudou essa dimensão do direito público
liberal – provava à sociedade essa lógica regalista das coisas.
Quer a
ideia de reserva de lei, quer a ideia de preferência de lei – ainda hoje
utilizadas – não devem ser entendidas no quadro da sua dimensão originária, mas
sim devem contribuir para uma nova noção acerca da legalidade.
A reserva
de lei não deve ser entendida como reserva da administração , como uma reserva
de uma realidade física igual ao direito de propriedade – isto não é forma de
explicar as relações entre os diferentes atos do Estado – muito mais flexível
do que essa dimensão rígida de reserva.
Por outro
lado – a preferência legal – ideia de que a vontade da lei prevalece sobre as outras
será algo que terá que ser entendida na lógica de um princípio de legalidade
que não abrange apenas a lei, mas também uma dimensão supra-legislativa e
infra-legislativa.
Esta lógica
liberal está por trás de alguns traumas do Direito Administrativo. O trauma da
reserva da administração (oposto à reserva de lei). “Esta reserva de lei, no
quadro destes traumas, era considerada como uma realidade limitada e no quadro
da tal lógica autoritária – pensando nas duas dimensões da legalidade: A
vinculação (quando a lei impõe uma determinada conduta com um determinado conteúdo)
e a discricionariedade (quando a administração tem uma margem de escolha ara a
solução mais adequada) – estas duas realidades, que hoje vemos como duas manifestações
do princípio da legalidade. Na lógica liberal, levava à consideração que o
poder discricionário era um poder livre e à margem da lei – dimensão
autoritária.
Segundo Marcelo
Caetano este afirmava que o poder discricionário era um poder integralmente
livre e que nele não valia a ideia de legalidade – entra nas exceções na
legalidade. Isto conduzia a uma lógica que era do livre arbítrio da
administração: esta podia fazer o que entendesse, exceto naquela área limitada
em que a lei dissesse alguma coisa diferente – em que uma área que a
administração gozasse de efetividade.
Este
entendimento da legalidade, no quadro desta distinção entre poderes vinculados
e poderes discricionários – é algo que nos dias de hoje não faz qualquer sentido
e tal não pode ser admitido. O poder vinculado como o poder discricionário são
aspetos diferentes do exercício do poder e existem em todas as atuações
administrativas, não é possível encontrar uma atuação em que não haja aspeto vinculados
e/ou discricionários. Assim sendo, não faz sentido separar essas duas
realidades como se elas não fossem duas manifestações na realidade, por outro
lado porque a administração nunca é livre de fazer nada – é sempre obrigada a
reconstituir a vontade do ordenamento jurídico para aquela decisão concreta- A
ideia de liberdade é com os privados e nada tem que ver com a administração
pública – mesmo se os liberais introduziram essa confusão. O poder
discricionário é um poder legal, igual ao vinculado, que existe com os mesmos
termos porque a administração não pode nem deve limitar-se a uma função de
execução cega da lei – precisa de reconstruir a vontade da lei e a esta obriga
a fazer escolhas que não podem ser evitadas. Estas escolhas não são livres –
resultado da manifestação de uma vontade normativa que está submetida aos
parâmetros da lei, que pode ser fiscalizada pela lei – escolhas determinadas
pelo ordenamento jurídico, pelas regras do mesmo, uma realidade com caráter
normativo. Se isto é assim já para administração prestadora do Estado Social, o
mesmo se diga em relação à Administração Infra-estrutural do Estado Pós-Social
em que vivemos. Na lógica das relações multilaterais não é compatível nem com
este entendimento fechado da legalidade nem com visões autoritárias da
administração pública e do Direito Administrativo. É por isto que, sob influência
da doutrina germânica, que surgiu em Portugal uma construção, teorizada pela
primeira vez por Rogério Soares, de que a legalidade não deve significar apenas
o respeito pela lei nem a lei da Assembleia da República, nem a lei em sentido
formal, mas que deve ser no sentido mais amplo e deve significar a subordinação
a toda ordem jurídica. Esta ideia que foi de origem alemã, hoje em dia foi
adotada pela maioria da doutrina – quer em Lisboa (pelo Professor Marcelo
Rebelo de Sousa, pelo Professor Vasco Pereira da Silva, pela Professora Maria
da Glória Garcia), quer pela Escola de Coimbra.
O próprio Código
de Processo Civil – no seu artigo 3o/1 – vem delimitar o objeto da legalidade.
Este artigo vem-nos dizer que o princípio da legalidade não é apenas a
subordinação à lei, mas é a subordinação ao direito, no seu todo. Tal como
afirma o Professor Vasco Pereira da Silva, isto significa a abertura do
sistema: não é a lei que está em causa, mas sim todo o direito que tem de ser
chamado quando falamos em princípio da legalidade. Isto significa que o
princípio da legalidade tem uma dimensão: Supra-legislativa: Tudo o que vem do
Direito Internacional, Direito Global e Direito Europeu é matéria de legalidade
da administração – o conteúdo do princípio da legalidade é determinado por
estas fontes supra-legislativas, tal como a Constituição da República
Portuguesa; quer fontes de natureza legislativa: Lei, Decreto Lei, Decretos Legislativos
Regionais; quer infra-legislativa, como Regulamentos da administração, planos
da administração, atos administrativos, contratos – são também fontes de
direito. São assim fontes de direito porque, por exemplo, se a administração
pratica atos administrativos – prestando algo a alguém, atribuindo a uma bolsa
de estudo – a administração não pode simplesmente revogar ou anular essa mesma
atribuição: só o poderia fazer se existissem razões de legalidade ou de mérito
que permitem que ela justificadamente mudasse de opinião. O próprio ato
administrativo condiciona os atos futuros da administração – é fonte de
legalidade. O mesmo acontece com os contratos. Segundo o Professor Vasco
Pereira da Silva, este refere também os contratos que nasceram de um conflito
jurídico – como o contrato celebrado entre o governo português e a Lusoponte
(inicialmente originou uma situação litigiosa, mas que acabou da melhor
maneira) - na construção da ponte Vasco da Gama: Foi uma decisão muito
contestada, que levantou um grande protesto ao governo português no âmbito da União
Europeia – aquele contrato é uma fonte de direito a menos, o que estava em
causa eram duas diretivas europeias, as Diretivas Habitat e as Diretivas Aves –
que protegiam as aves do lado de lá do Rio Tejo. Os interesses protegidos por
essa diretiva – interesse ambiental –não tinham sido devidamente ponderados
pelo governo aquando da decisão da tomada para a construção da ponte. Quando se
gerou a discussão no tribunal, o governo alterou ligeiramente o local
inicialmente pensando para a ponte, mas sobretudo, o contrato veio estabelecer
relações jurídicas ambientais e estabelecer fontes de direito ambiental. Isto
faz com que tudo naquela ponte fosse determinado pela proteção do ambiente que,
inicialmente não tinha sido tido posto em causa. Assim, a UE vê este caso como
um caso em estudo – tudo apontava que corresse mal e que as opções iniciais não
se realizassem. Porém, existiu um contrato que criou obrigações ambientais.
Um problema
que estamos à beira de ter – é o problema do aeroporto. Foi tomada uma nova
decisão – não definitiva, não pode ser tomada porque a UE obriga a que uma decisão
deste género seja antecedida de uma análise de impacto ambiental. Porém, o
governo diz, numa lógica de adiantar as coisas, vai começar a construir e
depois “logo se vê” – isto não é razoável. Tomar a decisão sem esperar pelo
estudo do impacto ambiental é uma forma de fazer pressão política sobre os
órgãos políticos independentes – Junta. Se a resposta for negativa, o governo
tem de respeitar a norma administrativa de direito europeu. Isto para mostrar
que o princípio da legalidade não é apenas correspondente aos atos
administrativos (Leis, Decretos Lei, Decretos Legislativos Regionais), mas tem
dimensão supra-legal – Constituição da Republica Portuguesa, Direito Internacional
Público, Direito Global; e tem uma dimensão infra-legal – próprias atuações
administrativas são fontes de direito administrativo. Isto mostra que a nossa
ordem jurídica, em que a administração jurídica está submetida, além dos
direitos, em todos estes níveis, surgem fontes que a administração tem de respeitar.
Estabelecem parâmetros de controlo das decisões da administração pública
De
acordo com o Professor Marcelo Rebelo de Sousa, o Princípio da Legalidade “comporta
duas dimensões diferentes: a primeira veda à administração que contrarie o
direito vigente, que em caso de conflito preferirá ao ato administrativo em
causa – preferência de lei. Na segunda, exige-se que a atuação administrativo,
mesmo que não contrária ao direito, tenha fundamento numa norma jurídica, à
qual está reservada a definição primária das atuações administrativas possíveis
– reserva de lei. A reserva de lei projeta-se ainda de duas maneiras
complementares: na medida em que se exprime a necessária anterioridade do
fundamento jurídico normativo da atuação administrativa, ela constitui uma precedência
de lei; na medida em que exprime a necessidade de o mesmo fundamento
jurídico-normativo possuir um grau de pormenorização suficiente para permitir antecipar
adequadamente a atuação administrativa em causa, ela constitui uma reserva de
densificação normativa.”.
Relativamente
à preferência de lei esta afirma que não só são proscritas as atuações
administrativas que contrariem a lei; como em caso de conflito entre a lei e um
ato da administração, a lei prevalece. A preferência de lei acarreta duas consequências
fundamentais: em primeiro lugar, os atos da administração que contrariem a ordem
jurídica são ilegais e, por regra, inválidos; e existem também consequências quanto
à omissão de atos cuja prática a lei impõe. Segundo, a ordem juridica assegura
mecanismo, quer intra-administrativos, quer jurisdicionais, que permitem a
erradicação dos atos ilegais da ordem juridica, bem como o suprimento das omissões
ilegais. A preferência de lei impõe à administração um verdadeiro dever de
eliminar as ilegalidades cometidas que não se confunde com um eventual dever de
eliminar todos os atos ilegais, como afirma o Professor Marcelo Rebelo de
Sousa.
Referindo-me
agora à reserva de lei, na sua primeira dimensão como precedência de lei.
Existem múltiplos exemplos na Constituição da República Portuguesa, apesar da ausência
de qualquer referência genérica à reserva de lei. Existe a par disto uma
preferência pela decisão normativa dotada de legitimidade democrática
representativa direta ou indireta.
Visto
que, como se viu, a reserva de lei exprimindo-se apenas como precedência de uma
norma legitimidade habilitante da atuação administrativa é uma exigência apenas
formal, é necessário que, para que não se esvazie a reserva de lei do seu
fundamento democrático e garantístico, esta norma tenha uma determinada densidade,
ou seja, um especial grau de especificação e pormenorização, quer dos
pressupostos, quer dos meios, de tal atuação. Se não possuir esse grau de
densidade, ela é inconstitucional.
Concluindo,
atualmente o Princípio da Legalidade é constituído por dimensões diversas, todas
elas cruciais, e deve ser interpretado na medida em que possa englobar a ordem
jurídica no seu todo, procurando ultrapassar a chamada “Infância Difícil” que
teve. Sendo um corolário da atuação da administração, nunca pode ser preterido
sob o risco de pendermos para a situação que ocorria no Estado Autoritário, e
devemos ter sempre em vista o impacto que a discricionariedade e a livre
decisão da administração podem ter de modo a que este não se esvazie do seu conteúdo
material.
Cláudia Calado, n.º 140117043.
Bibliografia:
Lições do Professor Vasco Pereira da Silva;
Direito Administrativo Geral, Tomo I, Introdução e Princípios Fundamentais.
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